sábado, julho 25, 2009

Entrega

Quando foi trancafiado, Miranda, jovem de 19 anos, belo, branco feito giz, olhos claros e cabelo curto, não entendeu porque um dos enfermeiros lhe disse:
- Bem-vindo ao circo do inferno.
Jogaram-no numa sala, toda escura, cadeira no centro, iluminada de cima por um holofote.
- Vire pra cá, não é Deus que tá te olhando lá de cima.
Foi a ordem que lhe deu um sujeito 2 por 2, de regatas e sangue nos olhos. Miranda girou o corpo pra esquerda, cumprindo o que senhor capitão mandou - mas o rosto (pum!) foi pro sentido inverso, tal o safanão lhe pregaram no rosto.
Cuspe. Pé no peito. E o homem gritando:
- Se já não é, começa a ficar! Gosto aqui de todo mundo louco!!!
Outro sopapo, na orelha do outro lado. Agora sim, as duas metades iguais, inchadas.
O cérebro ainda zumbia quando lhe enfiaram no quarto. Branco, todo branco e pelado, um colchonete só encostado à parede do fundo, a parede que tinha a grade, a grade que era muito alta para ele saber o que era lá fora.
Passou 6 anos trancafiado. Vendo a gavetinha da porta abrir e a mão peluda empurrar tigela de comida nojeita, uma vez ao dia. Saía só pra apanhar e no trajeto, via outros carregados pra outras salas. Escutava berros. Ouvia risadas. Dentes rangendo. Gatas no cio. O vento chacoalhando as folhas. Um grilo. Uma cigarra. Os carros na rodovia distante. Ficou bom de ouvido.
Quando saiu, livre!, o brilho do sol tão forte embaçou-lhe a vista. Tinha um saco com duas calças, camisetas, meias e cuecas limpas. 20 quilos a menos e a menor ideia pra onde ia. Não se lembrava que era entregador de pizza e tocara a campainha errada.

sexta-feira, julho 24, 2009

Espinha

Viver é se fuder, pensava em voz alta João Josefino, debaixo do chuveiro, depois de tomar dois quarteirões de chuva na cabeça.
Quando a gente se fode, a casca engrossa, aprende na marra, na porrada, enquanto tá ainda tonto do cacete. Cambaleia, cai, levanta e continua. Assim pensava ele, enquanto tirava xampu da orelha.
Se fosse um dia de azar, vá lá, mas João não andava bem com a vida. Sozinho, sem niguém pra telefonar, dois ônibus por dia, ida e volta, dinheiro curto, trabalho chato e intenso. Almoçar almoçava, mal. Jantar era um copo de leite, chá da tarde, bolacha água e sal. Café da manhã, água sem ser gelada, pra não dar arrepio no dente.
Viver é se fuder. E em se fudendo, a gente vai vivendo, dizia ele, enquanto desenhava um Snoopy feito de CU no box do banheiro.
30 anos e a careca crescia. O ralo cheio de cabelo. A pança branca e redonda das cervejas que bebia sem ninguém, sentado na padaria da esquina. Depois subia, assistia TV no escuro e amanhecia com um raio penetra de sol, que a cortina furada não tapava às 6h30 da manhã.
O dia ontem foi quente. 10 pilhas pra terminar. Quanto mais trabalho, mas raiva de Margô, a perua ruiva de aparelho no dente sentada ao lado. Não que lhe fizesse algo, mas o perfume era muito doce àquela hora. João, nosso querido, cuja má vontade era deste tamanho, então trabalhava com marra maior ainda.
No ponto, o ônibus chegou lotado. 1h depois, pegou outro - cheio um pouco mais. Chegou onde descia - e chuva! Molhou o gibi do Batman que havia adquirido. Só chove nesta cidade bendita!
Namorada não tinha, rolinho não tinha, nem uma boa vizinha pra se olhar da janela do prédio. Os amigos tavam longe, o melhor já havia morrido - bem como o pai mala e a mãe gorduchinha.
Restava ele, João Josefino, enxugando as costas defronte ao espelho, examinando o pus duma espinha que brotava da testa e dizendo a si mesmo: fuder é se viver.